Quais são as condições e fatores que fazem com que uma obra de arquitetura se transforme em um ícone, um clássico? E o que isso tudo tem a ver com a construção da memória coletiva do lugar? Primeiramente, uma obra de arquitetura icônica deve ser capaz de despertar a admiração por suas características e formas únicas. O nascimento de um ícone da arquitetura tem a ver com uma série de fatores históricos, e principalmente em como ela ecoa o espírito de seu tempo. Ainda assim, algumas destas obras perecem e desaparecem prematuramente, passando a habitar um outro território: o território mítico da memória. La ‘Pagoda’ de Miguel Fisac, é um destes ícones míticos da arquitetura, o qual começou a ser construído em 1965 e foi demolido - em um evento carregado de teatralidade e dramas sociais - em poucos dias durante o mês de julho de 1999, trinta e poucos anos depois.
Carinhosamente apelidado de La ‘Pagoda’ pelos madrilenhos, evidenciando sua semelhança com as construções asiáticas, o icônico edifício de Fisac nunca foi uma obra unânime entre a comunidade de arquitetos. Ao longo de sua construção, auge e declínio, o Edifício de Laboratórios JORBA passou por uma centena de episódios e eventos trágicos: denúncias movidas por instituições religiosas, negligência por parte de seus administradores, especulação imobiliária, ciúmes profissionais e uma comunidade incapaz de compreender e apreciar a qualidade de uma obra de arquitetura que, nos dias de hoje, é vista como um mito ou mártir; vítima de uma injusta demolição.
Localizado nas proximidades da autoestrada M-30, paralelo à rodovia que liga Madri a Barcelona, o edifício foi construído em um lugar aparentemente inacessível, na periferia da cidade de Madri, dando adeus aos madrilenhos que deixam a capital através da Avenida América em direção ao aeroporto de Barajas. Suas formas - tão pitorescas quanto futuristas - somente intensificavam o mistério por trás da icônica obra de Fisac. Que tipo de edifício era aquele? Porque formas tão particulares? La ‘Pagoda’ pertence a aquela geração de edifícios modernos que marcaram tendência e, no contexto espanhol, romperam com a tímida abertura do regime franquista de meados dos anos 50, superando a tendência historicista característica do período ditatorial. A nova geração de arquitetos foi responsável por trazer o país de volta ao cenário internacional, dando forma a uma arquitetura de mesma importância histórica quanto o terminal da TWA de Eero Saarinen, a Sculptured House de Charles Deaton, o Kongresshalle de Berlin de Hugh Stubbins ou os projetos visionários alternativos como aqueles criados por Paolo Soleri.
A sede madrilenha dos Laboratórios JORBA começou a ser construída em 1965, arrastando-se até o ano de 1967, quando foi finalmente inaugurada. O complexo era composto por dois volumes distintos: por um lado, os blocos horizontais dos armazéns, um belíssimo exemplo de estrutura em “vigas hueso” da qual Fisac era um grande admirador, e já havia utilizado nos anos 60 no projeto para o Centro de Estudios Hidrográficos de Madri; por outro lado, um volume vertical, uma torre que abrigaria os escritórios da empresa. Tal torre, implantada frente a rodovia, reunia as diversas dependências administrativas dos Laboratórios JORBA além de uma biblioteca.
“O edifício seria um laboratório farmacêutico, um tema do qual eu tenho grande conhecimento, pois além de ser filho de farmacêutico eu projetei as sedes dos Laboratórios da Alter e também da Made […] a JORBA insistiu muito neste terreno, eles acreditavam que por sua situação geográfica elevada o edifício poderia se tornar um ícone, a imagem símbolo da própria empresa” - Miguel Fisac, julho de 1969 [Revista ‘Arquitectura’]
O cliente solicitou ao arquiteto ciudadrealeño (nascido em Ciudad Real) a concepção de um objeto icônico, uma estrutura que fosse capaz de se transformar na imagem da empresa, como um outdoor publicitário sobre uma das principais rodovias da capital. Com isso em mente, Miguel Fisac procurou criar um edifício singular: partindo de uma torre de planta quadrada e girando as lajes sobre seu próprio eixo em 45 graus. Sobre esta linha dinâmica de fachada, as esquadrias seriam colocadas entre o parapeito e a laje superior, revelando uma estrutura em concreto já bem conhecida por Fisac: o paraboloide hiperbólico, uma superfície matemática. A vantagem de utilizar uma superfície deste tipo é que não são necessárias fôrmas curvas para a concretagem, mas uma série de segmentos retos, neste caso utilizando ripas de madeira.
“Partindo de uma planta quadrada de dezesseis metros de lado, eu decidi girar as lajes 45 graus em relação ao pavimento anterior dando forma a um tipo de superfície muito específica em sua geometria: paraboloides hiperbólicos […] O objetivo final era exatamente este: que a estrutura do edifício fosse chamativa, e efetivamente ela era, o problema é que para algumas pessoas, ela era chamativa demais” - Miguel Fisac, julho de 1969 [Revista ‘Arquitectura’]
Se La ‘Pagoda’ de Fisac tivesse sido construída em um terreno mais central, talvez ela tivesse sobrevivido. Longe dos olhos de todos, sua estrutura única não pôde ser devidamente apreciada em relação a seus méritos: o refinado contraste entre as superfícies de vidro da fachada e as bandejas de concreto aparente; a brilhante solução estrutural composta por oito pilares metálicos; a rigidez do núcleo vertical e a leveza de suas plantas; as belas vistas emolduradas pelas esquadrias metálicas em fita; a rotação sugestiva de um pavimento em relação ao outro; etc. O resultado disso é uma torre de estrutura ímpar, um objeto estilizado que se transforma com a luz do sol ao longo do dia, a qual se converteu rapidamente no símbolo da nova arquitetura espanhola e, devido a sua expressividade formal, foi bem acolhida pela maior parte dos madrilenhos. Entretanto, como seria visto à seguir, nenhum deles - individual ou coletivamente - foi capaz de defendê-lo de sua maior tragédia.
O escândalo da demolição de uma das mais emblemáticas obras de Fisac lançou uma nova perspectiva sobre o edifício e o projetou a um status de monumento, um título que havia sido veementemente negado ao longo de sua curta existência. O complexo dos Laboratórios JORBA estava abandonado desde meados dos anos 90 e quando o Grupo LAR comprou o complexo para instalar a nova sede de seus escritórios, a primeira ideia de reformar o edifício caiu por terra uma vez que o projeto original de Fisac já não cumpria com as novas normas de proteção contra incêndio da prefeitura de Madri. Incapazes de convencer as autoridades da necessidade de se manter fidelidade ao projeto original de Fisac, devido ao seu alto valor formal e simbólico, foi proposta a construção de um novo edifício em um terreno adjacente e parte da mesma propriedade. Seguindo uma nova resposta negativa da prefeitura, restava uma única saída: a demolição do edifício. Frente ao trágico fim que se aproximava, foi proposto incluir La ‘Pagoda’ a lista de edifícios tombados pela Comissão de Patrimônio da Comunidade de Madri. Uma vez mais, as intenções de proteger este ícone da arquitetura moderna madrilenha e espanhola caíram por terra, e finalmente, em julho de 1999, aproveitando o esvaziamento da cidade durante o alto verão madrilenho, deu-se início - de forma quase furtiva - a demolição de La ‘Pagoda’. A golpes de marreta, pouco a pouco foram caindo suas paredes, fechamentos e acabamentos até não sobrar nada mais que uma vaga lembrança de tudo aquilo que fora um dia.
Por acaso os “especialistas” não eram capazes de reconhecer os valores estéticos e construtivos de La ‘Pagoda’ que, por sua vez, pareciam tão evidentes aos olhos do Grupo LAR, ultimamente considerados responsáveis pelo seu trágico fim? Ricardo Aroca, presidente do Club de Debates Urbanos e pouco tempo antes também diretor da Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid [ETSAM], acusou o corpo técnico do município, arquitetos e demais especialistas de dobrarem-se ante os interesses econômicos e políticos dominantes, pondo ênfases em sua rejeição ao trabalho de tais comissões que, em sua opinião, escolhiam a dedo o destino de dezenas de edifícios. Não obstante, é fato que uma grande parcela da culpa se deve ao ciúme e inveja de outros tantos arquitetos, assim como o fundamentalismo racionalista; duas das principais causas pelas quais tais “especialistas” se negaram a proteger La ‘Pagoda’ quando ainda havia tempo para isso.
Finalmente, La ‘Pagoda’ nunca chegou a ser reconhecida como um monumento. Ela nunca foi vista como tal, tanto aos olhos dos especialistas - os quais a consideravam uma obra de extravagante irrelevância - quanto aos olhos dos madrilenhos. A partir da perspectiva que temos hoje, não há dúvidas de que La ‘Pagoda’ tinha todas as características necessárias para se converter em monumento, muito mais do que a maioria de estruturas similares que passaram ilesas pelas tragédias das últimas décadas; obras totalmente inexpressivas se comparadas à singularidade das formas de La 'Pagoda'. Um mito da arquitetura moderna espanhola incapaz de sobreviver dentro do corrosivo ambiente cultural e social madrilenho da época; um mito que não soube despertar as pessoas para seus possíveis valores técnicos, históricos e culturais; e definitivamente, uma obra incompreendida e que ninguém quis ver como aquilo que era, que sempre foi: um clássico da arquitetura.
Referências
[1] Rivera, David. ‘El momento que nunca fue’. Artículo contenido en ‘Miguel Fisac: la delirante historia de la Pagoda’, 2013. Fundación Caja de Arquitectos.
[2] Rubio, Andrés. ‘Miguel Fisac: la delirante historia de la Pagoda’, 2013. Arquia / documental 28. Fundación Caja de Arquitectos.
[3] AA.VV. ‘AV Monografías 101: Miguel Fisac’, 2003.
[4] Eguiluz, Patxi; Copertone, Carlos. ‘La vida breve y LARGA HISTORIA de La Pagoda (I)’. Revista Architectural Digest [AD], 2016.
[5] Eguiluz, Patxi; Copertone, Carlos. ‘La vida breve y LARGA HISTORIA de La Pagoda (II)’. Revista Architectural Digest [AD], 2016.
Miguel Fisac: de lo tectónico a la arquitectura
Curioso, inquisitivo y tenaz, Miguel Fisac [1913-2006] aprendió haciendo. Fascinado por la tecnología y la construcción, su experiencia directa en obra suplió todo aquello que ni la universidad ni los libros supieron enseñarle o alcanzaron a transmitirle.